Uma corrida para iniciar o dia, aulas de manhã com especialista, almoço em um buffet especial, à tarde uma passadinha na padaria e, à noite, um brinde com vinho, tudo acompanhado por nutricionista. Poderia ser a rotina de um dono de multinacional, mas quem tem vivido essa farra no Brasil hoje, acredite, são muitos gatos e cachorros de estimação.

O PIB brasileiro pode estar numa fase difícil, flertando com a recessão técnica, mas o segmento de pets está em pleno crescimento, com a projeção de movimentar R$ 36,2 bilhões em 2019, uma alta de 5,4% sobre 2018, segundo dados do Instituto Pet Brasil. Com esse resultado, somos o segundo maior mercado para pets do planeta, atrás apenas dos EUA. Quem não tem seu próprio bichinho, inclusive, finge que tem – o filtro que insere um cachorro dormindo nas fotos está viralizando no Instagram neste momento.

A estimativa de 2018 foi de que a população pet brasileira tinha aproximadamente 139,3 milhões de animais, crescimento de mais de 5% em relação a 2013, quando a última contagem foi feita. Os dados sobre o crescimento dos pets contrastam com números que mostram o envelhecimento da população de pessoas e a diminuição da taxa de fecundidade no país (passou de 2,54 filhos por mulher, em 1996, para 1,73 em 2016, abaixo da taxa de reposição).

Alta performance, baixa manutenção

Mas será que há relação entre uma coisa e outra? “Seres humanos são afetados pelo ambiente em que vivem e mudanças sociais e econômicas afetam diretamente nosso comportamento”, afirma a psicóloga Laís Milani, que é membro da diretoria da área de Terapia Assistida por Animais do Inataa (Instituto Nacional de Ações e Terapias Assistidas por Animais). “Vejo que, no geral, as pessoas optam cada vez menos por ter filhos e pensam mais no peso dessa decisão. Sendo assim, ter um pet pode ser visto como uma alternativa para suprir a necessidade de afiliação dentro desta realidade socioeconômica”, argumenta. Segundo ela, enxergar o bicho como “filho” pode ser prejudicial para os animais, se implicar que eles não possam exercer comportamentos naturais de sua espécie.

Segundo Martina Campos, diretora-executiva do Instituto Pet Brasil, pode haver relação entre o envelhecimento da população e a maior busca por gatos como pets, já que esse foi o tipo de animal cuja procura mais cresceu (8,1%) no período entre 2013 e 2018. “Entendemos que esse crescimento de felinos pode ser creditado ao envelhecimento da população, que procura por um animal que demanda manutenção mais simples”, diz ela.

Outros fatores citados por Campos como possíveis explicações para a maior procura por gatos são a verticalização das cidades, domicílios menores e o aumento no número de pessoas que moram sozinhas. “Eles veem nos felinos uma opção mais adequada, pois são animais menos ‘carentes’ que os cães”, afirma ela.

Família moderna

Cresce o número de pets, crescem também a quantidade e a variedade de serviços para eles, alimentando a demanda de uma nova categoria familiar: os “pais” e “mães” de pet. São adultos que, por motivos variados, escolhem cuidar de um ou mais animais em seus lares e nem sempre cogitam incluir uma criança real dentro da estrutura familiar. O pet, seja ele mimado ou não, acaba como um substituto para os filhos.

Não faltam serviços diferentes: além de segmentos básicos como clínicas veterinárias e pet shops, também há creches, adestradores, passeadores, babás, nutricionistas, hotéis, clínicas específicas para espécies exóticas, padarias, confeitarias e buffets para bicho, spas, resorts e até funerárias, segundo o Instituto Pet Brasil. Em média, o brasileiro gasta mensalmente R$ 274,37 com cachorros pequenos (até 10 kg), R$ 326,98 com cachorros médios (11 kg até 25 kg) e R$ 425,24 com cachorros grandes (26 kg a 45 kg). Com gatos, a despesa mensal média é de R$ 205,94. Os dados são do próprio instituto.

Os motivos para adotar ou comprar um bichinho são muitos. “Há quem deseje um pet pois não se sente capacitado para ser mãe ou pai de um filho gente e prefere treinar antes”, afirma a psicóloga Márcia Pettenon, do Rio Grande do Sul, especialista em psicoterapia familiar. “Existem os casais que não se sentem atraídos pelo projeto de ter um filho humano, mas desejam aplicar o exercício parental com os pets; existem as famílias com uma criança que desejam que ela tenha um ‘irmão’ pet para interagir”, enumera ela. “Não percebo uma substituição, até porque são universos bem diferentes”, defende.

A médica Haianna Franco, que mora no bairro da Bela Vista, em São Paulo, é uma mãe de pet que escolheu sua “filha”, a maltês Cecília, pela companhia. “Nossas famílias moram em outra cidade e sentíamos vontade de aumentar nosso núcleo familiar”, diz ela, que está em uma união estável. “Temos a Cecília como nossa companhia, cuidamos como nossa filha, ela é superamorosa. Pretendemos, sim, ter filhos no futuro após uma maior estabilização profissional e financeira”, conta Franco. Por mês, o gasto com a cachorrinha é de cerca de R$ 1.000: a maior parte vai para a creche que o pet frequenta duas vezes por semana e que tem câmeras 24 horas para os “pais” monitorarem os bichos à distância.

Segundo Pettenon, a relação familiar com os animais oferece vantagens aos donos porque estimula a bioquímica cerebral. “Há uma liberação de dopamina e serotonina, neurotransmissores associados ao prazer, minimizando ou prevenindo sintomas depressivos”, explica ela. “De acordo com pesquisadores da Universidade de Duke, nos EUA, também está presente a liberação de oxitocina, o ‘hormônio do amor’, que diminui o estresse e a pressão arterial. Já sabíamos [anteriormente] que esse hormônio estava presente na relação pais e filhos. As pessoas buscam diferentes formas para expressar os seus afetos e, dentre elas, os pets têm tido um lugar de destaque”, afirma a psicóloga.

Guarda compartilhada do bichinho

Uma pesquisa recente, conduzida pela JWT Intelligence, indica que 89% dos norte-americanos solteiros e 91% dos norte-americanos vivendo relacionamentos acreditam que animais de estimação são como crianças de fato. Com essa incorporação tão grande dos pets à vida humana, é impossível não questionar até onde a linha que nos divide dos bichos começa a se borrar no aspecto jurídico. Só que, por enquanto, ainda não dá para ser literalmente pai de pet no nosso país. “No Brasil, o animal não é coisa, mas ele também não é equiparado a um ser humano”, explica Claudia Nakano, advogada especializada em direito animal. “Ele tem uma diferenciação em relação à coisa, como está dito no Código Civil, mas ele tem proteção relacionada à preservação da espécie”, afirma ela.

Isso significa que não é possível casar com bichos ou deixar heranças para eles, pois a lei entende que não são pessoas. Mas é obrigatório que os bichos tenham garantia de alimento e sejam protegidos de abusos, dois exemplos de direitos específicos para animais.

No entanto, em casos de divórcio, já é comum que os pets sejam tratados de forma semelhante a crianças na separação dos bens entre o casal. “Já que não há legislação específica, usa-se a legislação do Direito da Família por analogia”, explica Nakano. “Hoje, os tribunais de justiça do país inteiro já reconhecem as Varas de Família como competentes para julgar os casos que envolvem animais. Se eu estou me separando do meu marido e, nessa separação, eu não tenho filhos e sim um pet, nessa mesma separação eu posso discutir sobre guarda e visitas. Eu posso fazer um pedido de pensão para o meu marido caso eu não tenha condições de cuidar”, exemplifica ela.
Pelo Código Civil, os pais podem pedir a guarda das crianças humanas de duas formas: unilateral (fica apenas com o pai ou apenas com a mãe) ou compartilhada (majoritariamente com um e em pequenos períodos com o outro). Para os pets, além dessas duas categorias, surgiu uma terceira: a alternada. Nessa modalidade, a cada certo período de tempo, como uma semana ou uma quinzena, um dos “pais” assume a guarda do pet e fica com ele pelo mesmo tempo que o outro ficou, como em um revezamento.

Nakano atua como conciliadora nos CEJUSCs (Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania) de São Paulo, onde é comum a mediação de separações em que os pets entram no meio. A parte boa da resolução por esse meio, acredita a advogada, é que ela não envolve litígio e poupa as partes de enfrentar processos judiciais
Infelizmente para os mais entusiasmados, as pensões para pets só incluem o básico, sem direito a pompas. “Os serviços extravagantes geralmente não são incluídos”, afirma Nakano. “É preciso ter documentos comprobatórios que demonstrem a necessidade de cada pedido. O juiz sempre vai julgar de acordo com a necessidade, e não de acordo com a comodidade”, explica a advogada.

Victor Bianchin
UOL TAB
11/10/2019